28.5.04

Ainda tenho as tuas feridas. Hoje passei pelas bandas sonoras, parei nos sinais vermelhos como se lançasse raízes aos centímetros de estrada que ficavam para trás. Soube-me bem a janela aberta durante a noite, o luar que invadia o meu sono profundo, o primeiro desde há muitos meses. Ainda tenho as farpas que rasgam a carne quando os céus estão azuis, aquele azul esverdeado como algas, sarapintado em grãos de areia onde o sol beija a pele. Ainda tenho os teus olhos cravados na nuca, arde-me o peito quando acordo sem ti, se eu pudesse queimar um planeta com esta angústia que me preenche.
Hoje fiz o caminho como uma bela palmeira. Fomos a rir e a conversar sem pressas, não quis pensar que teria que vir para aqui, para o meio dos loucos, cair sem amparo entre a corja amorfa e cinzenta. Também isto me soube bem, e olha, a raiva e a náusea e a peste e os vaipes de revolta já são folhas da mesma árvore, já são cores no meu tapete e não tomam conta dos momentos, é que mesmo assim não tiveste razão. Corta-se uma vida ao longo dos anos, sobretudo à sexta-feira, com as facas do desespero.
Aqui não se respira o mesmo ar que tu e eu partilhámos. As pessoas são curtas, finas, rasas, e o pavor leva-as a apedrejar os cães que ladram em tons diferentes. É uma casa difícil, esta que me guarda as costelas enquanto ando por aí. Vais gastar um pouco mais do teu sangue, outras quantas certezas, e acabas por acordar numa manhã como esta.
As nuvens continuam a ser nuvens, e dos dias confusos só tenho as tuas feridas. Preciso de pouco mais para voltar a pintar esta praia com as cores da paixão.

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