Escrevi o primeiro "Assassinos com Natas" quando ainda havia Forum Literário. Este já andava pensado há cerca de dez anos, mas acabou por sair só hoje, em 15 minutos durante os quais voltei a ter vinte e poucos anos (até se nota na escrita patética ;) )
Tornou-se agora uma espécie de director's brand, como os reflexos do Shyamalan, aliás os do Hitchcock. E Ricardo é o Randall Flagg que Stephen King pensou em versão urbano-stressada.
O vento soprava, o uivo da nortada inclemente enfiando poeira e pólen no cabelo de Ricardo. A harmónica, suspensa por duas tiras de couro preto, baloiçava gargarejando um sussurro premonitório com cada bátega de ar gelado. Amachucou a carteira de Aspegic, atirou-a para o passeio coberto de lixo do fim-de-semana, e selou, com um passo resoluto em frente, o fado daquele primeiro dia de Primavera.
Salvador Maria e Serafim de Deus, hirtos na cinzenta verticalidade instantânea com que se faziam cobrir todos os dias, subiam desde o piso -27 no elevador, herméticos na seriedade Ovídica própria das pessoas de bem. As leis da termodinâmica confluiam a favor da maré libertária que tomara conta de Ricardo quatro horas atrás, quando acordara ensopado em sal e ureia, um avatar plutónico, a metamorfose de César em estrela ígnea. Gotículas de uma atmosfera asséptica pousavam, agitavam-se e desapareciam esquecidas sobre os números que iam surgindo, pálidos como os dedos de um Lapão em Novembro.
Os dois sócios subiam assim na paz beatífica de uma rectidão assumida. Todos os seus dias eram indistintamente agradáveis e sem prejuízo da mediania completa, afinal o único objectivo inteligível de qualquer homem.
Precisamente quando as portas de vidro triplo, polido até à estupidez, se abriram de par em par, cavalgou pelo ar o tinido sintético da campainha do elevador. A bota de Ricardo agrediu as lajes, de mármore do Congo, ao mesmo tempo que os pés direitos de Salvador e Serafim.
A recepcionista e os dois vigilantes respiravam quietos, em posição de sentido, de frente para a
porta do elevador. A gabardina castanha esvoaçou adornando a entrada de Ricardo como as asas de Uriel. A sua tocha era divina, a natureza fractal do mundo era isto.
Duas franciscas, lâminas recurvadas sequiosas, saltaram como rolhas das mãos de Ricardo e atingiram os vigilantes em pleno nó de gravata. Os sicários tombaram, sem urdir reacção, um quilo de ferro e madeira plantado em cada pescoço.
Salvador e Serafim permaneciam no limbo entre o elevador e o átrio, protegidos do violento cenário pela indecisão entre o pasmo e o fascínio. Seguramente que se trataria de um erro, e não de uma realidade diferente da sua. Com toda a certeza que tais situações, tão pontuais, teriam uma probabilidade diminuta de suceder ali, no átrio de entrada da sede global do grupo Bello e Gallo, em perfeito vilipêndio dos valores mais cristalinos aos quais cada homem, claramente, almejaria.
Ricardo deixou cair a gabardine. Trazia às costas um paralelipípedo translúcido com uma tampinha vermelha, cheio até ao gargalo de um fluido dourado e viscoso. Sentiu os olhos traírem a sua doutrina, saíndo-lhe das órbitas na antecipação do exercício da justiça. Avançou devagar, inumanamente devagar, até se postar como um totem malaio perante os dois esbirros do Nada. Ninguém vertia um só dedo de suor. O corpo da recepcionista pendia desengonçado sobre o balcão de granito, a língua roxa e inchada do último esforço em busca de um sopro de vida. Esganara-se fulminada num enfarte ao ver que iria possivelmente perder o seu direito às quinze horas diárias de trabalho.
Se quaisquer palavras houve, trocadas entre os três ícones que embarcaram na caixa inoxidável, rumo ao Hades gasocarbónico que jazia por baixo do edifício, esta crónica já vetusta não as traz recordadas. Cabe apenas assinalar o notável, porque não relativo, silêncio com que o pilar idólatra de aço e cristal veio a ruir, quando as centenas de veículos ali estacionados, com os seus grandes depósitos de combustível, se juntaram à celebração vulcânica começada às espaldas de Ricardo, temperada com a matéria vil de Salvador e Serafim.
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