31.3.06

(nunca esquecer)


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


- Alexandre O'Neill

30.3.06

O desespero - percebes finalmente -
era uma energia, uma espécie de caminho
para quem não tinha passos. Os amigos
(se assim lhes podias chamar) encontravam-se
à volta de uma garrafa e injuriavam toda a noite
o amor de que em breve se fariam escravos.
.
Falavam de quase nada, os olhos parados
na música, o corpo disponível
para charros, risos e derrotas. Essas ruas,
sabes, nunca mais foram assim
o rastilho da descrença e o motim da desrazão.
Coisas de facto imberbes - navalhas
que fingiam a dolorosa perfeição da indiferença.

Pouco importa. Outros sinais cresceram,
fazendo desses rostos uma porta
fechada onde nem pela memória
esperas o milagre de encontrar alguém.
Deve ser a morte, o fim, isso mesmo
que julgavas esconjurar quando punhas flores
no gargalo verde e vigiado das garrafas.

A luz dos últimos bares tomba agora
sobre um corpo esquivo, mais sozinho,
que nem sequer nestas palavras acredita.

- Manuel de Freitas

29.3.06


pale green things


got up before dawn
went down to the racetrack.
riding with the windows down
shortly after your first heart attack.
you parked behind the paddock,
cracking asphalt underfoot,
coming up through the cracks

pale green things
pale green things

we watched the horses run their workouts.
you held your stopwatch in your left hand
and a racing form beneath your arm,
casting your gaze way out to no man's land.
sometimes I'll meet you out there
lonely and frightened.
flicking my tongue out at the wet leaves

pale green things
pale green things

my sister called at three a.m.
just last december.
she told me how you'd died at last, at last
and that morning at the race track was one thing I remembered.
I turned it over in my mind
like a living chinese finger trap.
seaweed and indiana sawgrass

pale green things
pale green things

22.3.06

as imperiais desertas
e agora
é agora num frémito
todo aceso
e que me perdoe o al berto
mas estou fodido
estou de esguelha
matriculado na conservatória
dos insolúveis de amor
registo à efe de mil
novecentos e menos um que o meu
num casaco de pele de bicho
abotoado cerrado até aos dentes
e de uma bica que acabou anteontem
endireito-me com costas
sustenho o miocárdio
num esgar transfixado
meto a primeira no pé direito
e peço-te lume -
look, she said, and a dead gull on a wave
is this the nine o'clock tide from the west,
i mused, is this where we all end
her eyes were grey and froth blew over
the long gone bird in that salty grip
look, she said again, and dead men swam
like capricorns chasing the dusk.
is this the west on a wave, i asked,
and the clouds in her eyes parted
as a wind swept her hair up
in the nine o'clock kiss
before putting our true selves to sleep.

17.3.06



I am the hearing that is attainable to everything;
I am the speech that cannot be grasped.
I am the name of the sound
and the sound of the name.
I am the sign of the letter
and the designation of the division.
o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.


JL Peixoto
O mar já não era para mim suficiente.
Fazia-me falta um rio
um rio sob sombra das árvores.

É difícil a meio da música
suportar a luz do café.

Estávamos juntos
como vejo estar no palco
sob dois projectores.

Os olhos
as mãos
todo o corpo
era só o frio da noite.

-João Miguel Fernandes Jorge
Está e sempre estará aqui como esteve desde sempre, até antes de eu ter saído de dentro da minha mãe. Está no ar crepitante de excitação quando os teus olhos prendem o sol em Agosto. Está na borda de um copo cheio e no som da multiplicação. É o nome da água e a ponta do relâmpago na terra molhada.
És o meu puzzle preferido. Com as marcas do caminho em cada peça, com partes que não se sabe bem onde encaixam, com meios-tons indistintos entre paisagens simples. Como num quadro de Miró, o todo floresce composto por lugares mais pequenos, por curvas cujo nexo só se faz notar quando olhas de mente aberta sem querer forçar cada região a fazer sentido isoladamente, e sim apreciando um desígnio sempre anterior. Como um oásis que teima em dar coerência ao pequeno lago à sombra das árvores, no meio das areias caóticas, sopradas, como rostos que se descobrem onde um observador menos atento só vê pontos.
Amo-te como a uma folha que para mim nunca está em branco.

16.3.06

Dylan Thomas - A Process In The Weather Of The Heart

A process in the weather of the heart
Turns damp to dry; the golden shot
Storms in the freezing tomb.
A weather in the quarter of the veins
Turns night to day; blood in their suns
Lights up the living worm.

A process in the eye forwarns
The bones of blindness; and the womb
Drives in a death as life leaks out.

A darkness in the weather of the eye
Is half its light; the fathomed sea
Breaks on unangled land.
The seed that makes a forest of the loin
Forks half its fruit; and half drops down,
Slow in a sleeping wind.

A weather in the flesh and bone
Is damp and dry; the quick and dead
Move like two ghosts before the eye.

A process in the weather of the world
Turns ghost to ghost; each mothered child
Sits in their double shade.
A process blows the moon into the sun,
Pulls down the shabby curtains of the skin;
And the heart gives up its dead.