O Zé é enfermeiro e trabalha num centro de saúde. O Zé, que ganha 800 euros por mês e vive em S. Mamede de Infesta, passou dez meses de Agosto consecutivos a suportar a nortada da praia de Leça porque tinha um sonho: visitar Ayers Rock e o Frying Pan Lake. Poupando os subsídios de férias – que foi investindo em certificados de aforro - e limitando os presentes de Natal aos familiares mais próximos, ao fim de dez anos, o Zé marcou finalmente a viagem para os antípodas, por um mês inteirinho.
O Zé regressou, cansado mas contente, e entreteve-se vários meses a organizar as centenas de fotografias que tirou com a sua máquina digital, que comprara na free shop do Aeroporto de Singapura, em que fizera escala na viagem de ida. Até que recebeu uma carta do Fisco.
Na carta, diziam-lhe que, com o que o Zé ganhava, não podia ter feito aquela viagem. Que, com toda a certeza, o Zé tinha ocultado rendimentos ao fisco. Que teria de pagar mais IRS, já que era óbvia a manifestação de consumos desproporcionados face ao seu salário de funcionário público. Que tudo isto era perfeitamente lícito, ao abrigo do artigo 87.º, al. f) da LGT, que autoriza a Administração Fiscal a avaliar indirectamente os rendimentos tributáveis, em casos como este.
O Zé não se conformava. Dez anos a poupar e agora queriam cobrar-lhe impostos sobre rendimentos que já tinham sido tributados? Queria reclamar, queria explicar as suas tristes férias em Leça, os livros que não comprou e o tabaco que não fumou, ao longo de 10 anos, para poder fazer aquela viagem. A carta do fisco dizia-lhe que podia reclamar. Mas também lhe dizia (ou alguém lhe explicou, o Zé, de tão transtornado não me soube explicar), que, se reclamasse, a máquina fiscal podia, automaticamente, intimar os bancos e outras instituições de crédito para prestarem ao fisco toda a informação bancária que este considerasse pertinente para provar a falta de razão da reclamação do Zé e a justeza da liquidação adicional. Que o fisco iria saber, num país altamente plastificado e bancarizado como é o nosso, onde é que o Zé faz as suas compras do mês, que restaurantes frequenta, a que horas e onde bebe, de vez em quando um gin tónico, quando paga a renda da casa, onde abastece o seu automóvel, ou se naquele dia em que apresentou baixa médica passou por alguma farmácia para aviar uma receita de anti-depressivos.
O Zé ficou apreensivo. O Zé não era criminoso, que diabo, sempre pagou os seus impostos. Mas o Sousa, um dos funcionários das finanças do Bairro Fiscal do Zé, era administrador do condomínio do prédio em que o Zé vivia, sempre atento às horas a que o Zé entrava e saía de casa e com quem. Há meses, tinham tido uma discussão numa assembleia de condóminos, porque o Sousa queria instalar uma câmara de vídeo na porta de entrada, apesar de o prédio ficar numa zona calma e não haver memória de qualquer assalto ou tentativa de e o Zé achava um desperdício (além da razão oculta: o Zé ainda estava na fase de poupança para a viagem). E o Zé não queria que o Sousa soubesse que o Zé, além da comida que comprava na mercearia da mulher do Sousa, também era cliente do Pingo Doce de Monte dos Burgos. Além disso, as poupanças tinham-se mostrado parcas para a viagem e o Zé quase rebentara com o saldo do cartão de crédito no regresso. Se o Sousa soubesse disto, iria cansar-se de o atormentar. A ele e aos outros vizinhos, como era hábito do Sousa, verdadeiro fiscal dos costumes, além de fiscal das finanças. O Zé estava quase a desistir de reclamar, quando descobriu que, se o não fizesse e a liquidação por métodos indirectos se tornasse definitiva, o pior ainda estaria para vir. A liquidação ia ser comunicada ao Ministério Público, que abriria um inquérito por crime fiscal. Provando que vendera os certificados de aforro acumulados ao longo de dez anos, o Zé, provavelmente, conseguiria que o processo-crime fosse arquivado, mas não se livrava de uma passagem pelo DIAP. Mas havia mais, na carta das finanças. Quando a liquidação por métodos indirectos se tornasse definitiva, além do Ministério Público, também o chefe do Zé seria informado do facto, para averiguações. Não conseguiram explicar ao Zé (“não se sabia”) se a comunicação ao seu chefe iria acompanhada da informação bancária recolhida sem o consentimento do Zé. O Zé não suportava a ideia de o Sousa, a mulher do Sousa, os vizinhos do Sousa, o seu chefe, a secretária do chefe e sabe-se lá quem mais tivessem acesso à sua vida daquela maneira.
Foi então que o Zé se lembrou de um cartão de visita que um estranho lhe oferecera numa magnífica viagem de comboio de Auckland para Wellington. O desconhecido trabalhava numa agência de emprego na Nova Zelândia e tinha-lhe dito que havia falta de enfermeiros naquele país. O Zé recusara então, polidamente, a oferta. Gostava demasiado deste outro jardim à beira-mar. Mas agora, via com outros olhos a proposta. Nesse mesmo dia, o Zé telefonou ao neo-zelandês, que dois dias depois lhe propôs um emprego. O Zé podia partir na semana seguinte, dissera-lhe.
Mas já era tarde. No dia anterior, o Zé fora constituído arguido por crime fiscal e sujeito a termo de identidade e residência. Não podia ausentar-se de casa por mais de cinco dias consecutivos.
*Esta história é, por enquanto, ficção, apenas porque o Presidente da República teve o bom senso de enviar para o Tribunal Constitucional o Decreto da Assembleia da República n.º 139/X.
O Zé regressou, cansado mas contente, e entreteve-se vários meses a organizar as centenas de fotografias que tirou com a sua máquina digital, que comprara na free shop do Aeroporto de Singapura, em que fizera escala na viagem de ida. Até que recebeu uma carta do Fisco.
Na carta, diziam-lhe que, com o que o Zé ganhava, não podia ter feito aquela viagem. Que, com toda a certeza, o Zé tinha ocultado rendimentos ao fisco. Que teria de pagar mais IRS, já que era óbvia a manifestação de consumos desproporcionados face ao seu salário de funcionário público. Que tudo isto era perfeitamente lícito, ao abrigo do artigo 87.º, al. f) da LGT, que autoriza a Administração Fiscal a avaliar indirectamente os rendimentos tributáveis, em casos como este.
O Zé não se conformava. Dez anos a poupar e agora queriam cobrar-lhe impostos sobre rendimentos que já tinham sido tributados? Queria reclamar, queria explicar as suas tristes férias em Leça, os livros que não comprou e o tabaco que não fumou, ao longo de 10 anos, para poder fazer aquela viagem. A carta do fisco dizia-lhe que podia reclamar. Mas também lhe dizia (ou alguém lhe explicou, o Zé, de tão transtornado não me soube explicar), que, se reclamasse, a máquina fiscal podia, automaticamente, intimar os bancos e outras instituições de crédito para prestarem ao fisco toda a informação bancária que este considerasse pertinente para provar a falta de razão da reclamação do Zé e a justeza da liquidação adicional. Que o fisco iria saber, num país altamente plastificado e bancarizado como é o nosso, onde é que o Zé faz as suas compras do mês, que restaurantes frequenta, a que horas e onde bebe, de vez em quando um gin tónico, quando paga a renda da casa, onde abastece o seu automóvel, ou se naquele dia em que apresentou baixa médica passou por alguma farmácia para aviar uma receita de anti-depressivos.
O Zé ficou apreensivo. O Zé não era criminoso, que diabo, sempre pagou os seus impostos. Mas o Sousa, um dos funcionários das finanças do Bairro Fiscal do Zé, era administrador do condomínio do prédio em que o Zé vivia, sempre atento às horas a que o Zé entrava e saía de casa e com quem. Há meses, tinham tido uma discussão numa assembleia de condóminos, porque o Sousa queria instalar uma câmara de vídeo na porta de entrada, apesar de o prédio ficar numa zona calma e não haver memória de qualquer assalto ou tentativa de e o Zé achava um desperdício (além da razão oculta: o Zé ainda estava na fase de poupança para a viagem). E o Zé não queria que o Sousa soubesse que o Zé, além da comida que comprava na mercearia da mulher do Sousa, também era cliente do Pingo Doce de Monte dos Burgos. Além disso, as poupanças tinham-se mostrado parcas para a viagem e o Zé quase rebentara com o saldo do cartão de crédito no regresso. Se o Sousa soubesse disto, iria cansar-se de o atormentar. A ele e aos outros vizinhos, como era hábito do Sousa, verdadeiro fiscal dos costumes, além de fiscal das finanças. O Zé estava quase a desistir de reclamar, quando descobriu que, se o não fizesse e a liquidação por métodos indirectos se tornasse definitiva, o pior ainda estaria para vir. A liquidação ia ser comunicada ao Ministério Público, que abriria um inquérito por crime fiscal. Provando que vendera os certificados de aforro acumulados ao longo de dez anos, o Zé, provavelmente, conseguiria que o processo-crime fosse arquivado, mas não se livrava de uma passagem pelo DIAP. Mas havia mais, na carta das finanças. Quando a liquidação por métodos indirectos se tornasse definitiva, além do Ministério Público, também o chefe do Zé seria informado do facto, para averiguações. Não conseguiram explicar ao Zé (“não se sabia”) se a comunicação ao seu chefe iria acompanhada da informação bancária recolhida sem o consentimento do Zé. O Zé não suportava a ideia de o Sousa, a mulher do Sousa, os vizinhos do Sousa, o seu chefe, a secretária do chefe e sabe-se lá quem mais tivessem acesso à sua vida daquela maneira.
Foi então que o Zé se lembrou de um cartão de visita que um estranho lhe oferecera numa magnífica viagem de comboio de Auckland para Wellington. O desconhecido trabalhava numa agência de emprego na Nova Zelândia e tinha-lhe dito que havia falta de enfermeiros naquele país. O Zé recusara então, polidamente, a oferta. Gostava demasiado deste outro jardim à beira-mar. Mas agora, via com outros olhos a proposta. Nesse mesmo dia, o Zé telefonou ao neo-zelandês, que dois dias depois lhe propôs um emprego. O Zé podia partir na semana seguinte, dissera-lhe.
Mas já era tarde. No dia anterior, o Zé fora constituído arguido por crime fiscal e sujeito a termo de identidade e residência. Não podia ausentar-se de casa por mais de cinco dias consecutivos.
*Esta história é, por enquanto, ficção, apenas porque o Presidente da República teve o bom senso de enviar para o Tribunal Constitucional o Decreto da Assembleia da República n.º 139/X.
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