When I hear music, I fear no danger. I am invulnerable. I see no foe. I am related to the earliest times, and to the latest.
- Henry David Thoreau -
Condensing fact from the vapor of nuance since 2003
20.7.14
António Araújo no Malomil.
Apátrida – O que é a pátria de cada um?, de Isabel Moreira, é um livro que prolonga e aprofunda temáticas obsessivas, quase fetichistas, e tópicos discursivos que caracterizam desde há muito a obra desta autora. Além dos sucessos de vendas Correspondência Comercial e A Excelência no Atendimento, até agora Isabel Moreira publicara três livros: o solitárioPessoas só, seguido do palavroso Quando uma palavra não basta(«candidato ao prémio Saramago») e depois 160 páginas de Ansiedade. Este é o quarto.
Segundo a nota biográfica constante desta sua nova obra, Isabel Alves Moreira nasceu há já 37 anos e, de momento, possui o grau académico «admitida a doutoramento» na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. É deputada e advogada por conta própria, tendo várias publicações técnicas na área do Direito Constitucional. A sua restante obra ficcional caracteriza-se pela «indefinição de género», refere a nota biográfica.
Ao utilizar o conceito de apatridia como tema/mote deste novo livro, Isabel Moreira convoca a um tempo a sua formação de jusconstitucionalista de projecção nacional e a sua trajectória íntima também de projecção nacional. Apátrida, na verdade, é indissociável de um périplo de vida marcado pelo sofrimento da distância em face da pátria de origem. A autora nasceu no país-irmão (o Brasil), a 2 de Abril de 1976 e, de acordo com a sua biografia divulgada na página oficial do Parlamento, concluiu com aproveitamento o 1º, o 2º e o 3º ciclos, o ensino secundário, a licenciatura em Direito e o mestrado em Direito Constitucional, na vertente de Direitos Fundamentais. A experiência do exílio, ademais motivado pela marca de brasa de um regime tirânico, governado por elites opressoras e moralmente corruptas, adensa a carga − ou descarga − autobiográfica da obra, convertendo este livro, texto indefinível, também em testemunho cívico e grito de rebeldia contra todas as formas de ditadura.
Isabel de Lima Mayer Alves Moreira transporta consigo a convicçãohippy chic de que ser escritor é escrever palavras, mesmo que com erros de ortografia. Articulando a literatura da abjecção e a tentativa frustrada de se configurar como escritora maldita, a autora explora as margens, levando esse absoluto desbordamento muito para lá de todas as fronteiras, sobretudo as do bom senso. Numa escrita de/em vertigem, em pulsão dilacerada e, acima de tudo, dilacerante (para os leitores), o livro insere-se muito bem, todo ele, no perímetro da imbecilidade literária e aí permanece quietinho, indecifrável e ofegante. Através de muitas palavras, agrupadas de forma deliberadamente desconexa, o projecto perturbante e petulante de Isabel Moreira, raiando o suicidário, fá-la mergulhar, com seus demónios privados e de estimação (por ex., «o demónio do asfalto» − pág. 27), nos abismos de uma insanidade que se suspeita teatralizada. Situa-se na margem, ou na encenação desta. Em todo o caso, é sempre a partir do centro, e do seu conforto, que a autora se projecta para a margem.Apátrida apresenta-se, pois, como uma convenção ficcionada em estilo abdominal, que a Wook entrega ao domicílio dos leitores por uns razoáveis € 10,98, mais portes de envio.
O ponto de chegada deste vórtice vocabular é a margem, a periferia da sanidade, mas, insiste-se, a sua raiz é o centro, um lugar cómodo, bem servido de transportes de toda a espécie. Isabel Moreira procura-se e acha-se no centro, por razões familiares involuntárias (origens na alta burguesia lisboeta; pai ministro de Salazar), mas também por uma demanda que, de forma radicalmente certeira, intui sempre a melhor via da sua própria intervenção (carreira académica convencional, ainda que abruptamente terminada em 2009; grupo parlamentar do Partido Socialista). Há um sagaz oportunismo na escolha destes territórios significantes e é essa subtilíssima estratégia retórica, mas também imagética, que permite à autora direccionar-se e posicionar-se para as margens – e ultrapassá-las para lá do limiar da inteligibilidade (pág. 35: «o gajo não sabe um cu do que se passa»). O centro constitui assim o ponto ou orifício («um buraco diferente» − pág. 25) de irradiação de uma marginalidade que, na representação da narradora/poeta/constitucionalista, se configura como impositiva e compulsória, até traquina. Mais ou menos como as crianças que dizem «xixi» e «cocó» e julgam ter feito uma grande malandrice, sufocando o riso por temor à palmadita iminente. Em troca, recebem apenas um calduço ligeiro e condescendente, enquanto os adultos em seu redor sorriem com bonomia, sussurrando entre si que o petiz até já vocaliza bem os dissílabos. Em Apátrida, a pauta é escabrosa, mas conformista e previsível. A autora, coitadita, esbraceja alguns substantivos e mesmo advérbios, na vã tentativa de ser «profunda» e escrever «literatura». Porém, não alcança mais do que o confessionalismo típico de um diário íntimo de uma adolescente de Telheiras. Julga-se provocatória, mas, no fundo, cumpre à risca as injunções do tipo de escrita que artificialmente cultiva. Crê-se rebelde, quando, na realidade, é obediente e betinha, fazendo a trote ou a galope tudo aquilo que dela se espera. Aliás, daqui não se espera muito. Apátrida é tão original e surpreendente como uma marquise de alumínio.
O campo semântico desta hemorragia emocional encontra-se logo definido na página 33, onde o autoritarismo é metonimicamente denunciado através da transnomição onomatopaica «chiiiiiiiiiiiiiiiiiiu» (pág. 33, prorrogado no «cala as minhas esplanadas» da pág. 51, e no ritmado «clique, clique, clique» da pág. 47). Apátrida assume-se como obra de continuidade, mas também de ruptura e em ruptura, numa incessante busca homicida, presente no projecto assassino de «matar o bailado dos qualificativos» (pág. 11). Melhor dizendo, Apátrida foi construída, por um empreiteiro de Alverca, em permanente disforia e completa transgressão de todos os cânones. No jornal Público/Ípsilon, de 30.05.2014, Maria da Conceição Caleiro caracterizou Apátrida como «um belo e doloroso livro, de recepção quase física», conferindo-lhe justissimamente a pontuação astrológica de quatro estrelas e um cometa («um livro surpreendente e dos mais interessantes que se publicaram em Portugal nos últimos tempos»). Na verdade, o texto é alvo de uma recepção física, a que de imediato se segue a regurgitação, também física e biliar («vou vomitar» − pág. 40; «o meu umbigo vomitado numa noite aterradora» − pág. 32; «talvez nesse dia ausente tenha / entrado em sua casa e amparasse / o vómito» − pág. 40; «esmurra o vomitado nas casas de banho» − pág. 34). Notamos, a espaços, o eco de uma certa pecuária do desalento.
Trata-se, inquestionavelmente, de uma obra de abordagem dorida, mesmo penosa, um cálculo renal literário. Maria da Conceição Caleiro concluiu a sua recensão interrogando-se sobre o ponto-chave, a questão crucial: «É quase indecidível se o não-alinhamento à direita do texto é intencional ou descuido editorial».
O problema do não-alinhamento à direita do texto afigura-se, de facto, absolutamente nuclear para compreendermos a economia narrativa deste Apátrida, quer enquanto livro-objecto, quer na dimensão de objecto-livro. A teoria do descuido editorialista encontra-se refém dos seus próprios postulados. Ao invés, a tese intencionalista tem apoio no percurso público da autora, que vem confirmando uma postura política, mas sobretudo ética, de rejeição estridente do alinhamento à direita, em confronto furioso, mas nem sempre coerente, com o fascismo das consciências e dos afectos, outrora presente em instituições sinistras como a PIDE ou o campo de concentração do Chão Bom do Tarrafal (reaberto por portaria ministerial de 17 de Junho de 1961).
É também nesse contexto transgressor da «ordem» que deve ser situada a existência de erros de ortografia, que Maria da Conceição Caleiro atribui a uma deficiência de revisão editorial («talvez se justificasse uma revisão que eliminasse os erros de ortografia»). É certo que o livro diz «externo» em lugar de «esterno» e «gim» em vez de «gin», mas tudo isto, entre pecadilhos do mesmo calibre, decorre da intenção de subverter a norma, instaurando, em seu lugar, uma gramática alternativa e caótica, mais próxima da autenticidade demencial da vida, de uma existência atravessada em cambiantes de tal forma sofridos e pavorosos que não se coadunam com as mais elementares regras de escrita.
As razões dos erros ortográficos de Apátrida, ao invés de serem atribuídas a um desleixo do pobre revisor tipográfico, como sustenta Maria da Conceição Caleiro, deverão buscar-se, porventura, quer nas deficiências da formação básica da autora, processada em retrógrados colégios de freiras, quer à sua proposta transgressiva de desconstrução de todas as convenções burguesas. Já a indesculpável ausência, também apontada por Maria da Conceição Caleiro, de «uma folhinha final antes da capa», encontra explicação plausível no actual contexto de crise económico-financeira e do PAEFF mas também, ousamos dizê-lo, ao propósito implícito de assinalar que esta é uma obra sempre inacabada, eterna e internamente aberta a todas as recepções que, como se referiu, são dominantemente físicas e, nesse âmbito, eminentemente corpóreas. A abertura e a recepção, físicas e corpóreas, são totais e vorazmente carnívoras, ávidas da plenitude dos sentidos, num experimentalismo sucessivo, às vezes múltiplo, e sempre infindo. Enquanto houver portugueses…
Se, como assinala a ex-ministra e pianista Gabriela Canavilhas na contracapa do livro, «Isabel Moreira não pára de surpreender», é também um facto que existe uma linha de continuidade temática e estilística, substantiva e formal, numa obra vulcânica, sulfurosa, que surge caracterizada por uma cadência torrencial de palavras, aluvião semântico de frases despojadas de sentido que obrigam o leitor a reencontrar-se, mesmo que a muito esforço e sem sucesso algum, com uma textura linguística impermeável à compreensão. Nesse sentido, Apátrida é também uma obra de resistência (talvez melhor, de re-sistência ou mesmo de re-sis-tência), que apela à desistência (de-sistência) do leitor, impedindo, de forma militante e raivosa, a descoberta de um qualquer sentido no arrazoado de caracteres que Isabel Moreira despejou às noites sobre um écran em branco.
O corpo e as suas excrescências regulares são centrais neste universo efervescente de delírio condoído e moído, patente logo na página 8, e na referência dela constante a um «estrume de dor». Estrume de dor constitui-se como metáfora e síntese perfeitas destas 104 páginas, impressas na Bloco Gráfico, Lda. (à Maia).
Menos apreensíveis, porque remetendo para um âmbito mais íntimo ainda que exposto sem pudores nem tabus, se afiguram alusões de tipo confessional, tais como: «estou peganhenta» (pág. 12), «fumei três ganzas e bebi uma garrafa de vinho tinto» (pág. 38), «fui a um bar e comi coisas verdes» (pág. 39), o assaz enigmático «e tal e tal e o caralho» (pág. 15) ou o nauseabundo «dói-me o útero / e de repente tudo cheira mal,» (pág. 19), e ainda «o meu útero, desde então, gentilmente destruído» (pág. 67), a que se poderiam acrescentar, em momentos mais dinâmicos e alvoroçados, «aquele entra e sai ritmado, gramatical,» (pág. 19), o «tirando três dedos femininos de dentro dela» (pág. 41) ou, numa aproximação mais esclarecida e penetrante, «metendo o que pode no que vai dar a umas trompas laqueadas» (pág. 41). Retenha-se ainda o trecho central da página 77, em torno do qual gravitam diversos eixos narrativos:
«tantos gajos, mães, eu tão bêbeda,
meticulosa, um a um, odor a odor, nos
pescoços, nas virilhas, nos cus, onde
fosse, respirar gajo a gajo à procura de
um cheiro familiar
familiar
nós»
Estas imagens, muito tributárias de uma herança democrata-cristã que combina bem a Rerum Novarum e o Moleskine, desaguam, enfim, «num charco, um charco de esperma a tapar a primeira marca de ter sido mãe» (pág. 33). No fim, a pestilência letal: «morro a procurar o teu cheiro em duas ancas» (pág. 74). Isabel Moreira transfere a mecânica de autoflagelação presente noutros momentos da sua obra (recorde-se o arrepiante «esfregar urtigas no sexo», do blogue «Consolação», texto de 2010) para uma pulsão castigadora da lucidez do seu público. A comunidade, já vasta, dos seus leitores e admiradores não gostará de ver que, em apenas duas páginas (pp. 42-43), esta «menina-lobo que uiva culpas» começa por se alimentar frugalmente («comeu uma colherada de batatas» − pág. 42) para, logo a seguir, ser alvo de uma bárbara agressão («a menina leva um estalo na cara» − pág. 43), agravada pela obrigatoriedade de proceder a serviços de limpeza doméstica numa posição desconfortável («eu de mãos atadas nas costas a lamber o chão.» − pág. 53). Note-se, em todo o caso, que este trabalho linguístico foi objecto da justa e devida remuneração pecuniária («o amigo que me enfiava uma nota no sexo» − pág. 53). Encontramo-nos, portanto, fora do âmbito da «unilateralidade sem dolo» que a autora denuncia na página 68.
No corpus literário que agora celebra com desnudada e espumante exuberância, a autora debate-se entre «a gaveta mortuária das palavras» (pág. 11) e a «desistência das palavras» (pág. 23), optando por um acto de não-desistência, pelo que este livro, livro-em-devir (work in progress), é também promessa, ou ameaça, de que outras obras virão, assim haja vida e saúde e nós cá todos a ver.
A este propósito do ver/não-ver, sublinhe-se que a visualidade é patente nos constantes (des)encontros desta obra com a recusa de qualquer pragmatismo, num escrutínio minucioso, quase espeleológico, da ontologia do Ser (o Sein, à Morais Soares, nº 14, c/v). É dessa inquirição cruciante que Isabel Moreira extrai um dos tópicos mais densos e recorrentes do seu trabalho: deus, um gajo sempre grafado com minúscula. Em metafísico diálogo com um Criador implacável e severíssimo, de matriz conservadora e veterotestamentária, Apátrida imprime à abordagem do divino um sentido agreste de permanente impugnação e desafio, nas franjas da apostasia. Os dispositivos são vários: árvores «tão altas que esmurram deus» (pág. 22), «o choro inútil de deus» (pág. 27), «deus a dar cabo de tudo» (pág. 32), «a cegueira de um tiro de deus amarelo ao máximo ao nosso encontro» (pág. 28, bisando a pág. 102 com «a cegueira de um tiro de deus amarelo máximo ao nosso encontro»). O mais conseguido de todos ocorre sob condições meteorológicas algo adversas, com «deus a mijar-se de medo pelas pernas abaixo naquele temporal» (pág. 98).
Neste cruzamento improvável, quase choque frontal, entre a inspiração tutelar de Rui Nunes e o ferrete freudiano do doutor Alves Moreira, a autora adere plenamente ao cáustico, mas na versão Primavera/Verão 2014. Na página 41, aparece inopinadamente um cigano com uns trocos no bolso, que pergunta à plateia: «− posso levar um bacano?». Podes.
Quase no final do livro, após conhecermos uma «manicura perdida no cabeleireiro de algés» (pág. 73), somos surpreendidos por aquilo que parece ser um acidente rodoviário, mas, vendo bem, talvez não seja. Ou talvez seja. O ponto é de todo em todo irrelevante e secundário para a percepção do sentido global de uma obra de várias espessuras e tessituras em que nada do que lá está é o que parece, pois nada se conjuga com nada, excepto a presunção de Isabel Moreira de que escreveu literatura e a convicção da Temas e Debates de que um livro de alguém que vai muito ao Prós e Contras sempre venderá alguma coisinha.
A metamorfose corpórea e a distorção anatómica são expedientes que transportam o leitor para um não-lugar (o não-lugar da ausência), em que a percepção do que se lê é severamente punida pela hegemonia, quase tirânica, da escanzelada sofreguidão de Isabel Moreira em colocar palavras atrás de palavras, limitando a isso o seu gesto criativo, ou seja, rasurando a intervenção dos códigos inibidores da pura dejecção verbal. Enquanto houver um teclado e um portátil com bateria, teremos golfadas de angústia. É sob esta perspectiva, a perspectiva baconiana da distorção anatómica, que devem ser compreendidas, por exemplo, as referências a «um intestino prolongado pela garganta», constante da página 44, e a um «útero invertido», da página 48. Ou, mais gastronomicamente, um dos muitos trechos Maddie MacCann de Apátrida: «− Onde está o meu pai? Eis a pergunta que lhe come a pálpebras enquanto mastiga lombo de vaca e lágrimas de desaparecimento do pai.» (pág. 46).
A insalubridade vivencial é exaltada de modo mais lateral do que noutras obras de Isabel Moreira, estando, ainda assim, presente de forma visível, apesar de fugaz. O exercício físico, por exemplo, encontra-se limitado ao encaixe carnal de exclusivo fito orgásmico, erradicando-se por via político-administrativa práticas como o badminton e o ténis de mesa, até porque, como bem sabeis, «quem faz muito desporto demora a vir-se» (pág. 49). Ainda que catártica, esta focalização do trabalho dos corpos na ginástica sexuada («morde-lhe as mamas» − pág. 52) é susceptível de gerar equívocos e até algumas frustrações, nomeadamente quando um dos interlocutores não se mostra à altura das viscerais exigências («− és uma puta velha que não faz um homem vir-se.» − pág. 49). No limite, «− assim dói» (pág. 48), tanto mais que, numa evocação críptica de Bertolucci, se confessa: «eu também não gosto de manteiga» (pág. 23; itálico no original).
A violência, extrema e arrebatada, é resultado, mas também reverso, da ausência de pátria, dessa a-patridia existencial personificada na presença tão ansiada quanto intermitente do pai/pau, tal como apreendemos o sentido do diálogo da página 70:
«− quem és tu, pai?
− disseste pai?
− não, disse pau.»
Jurista-constitucionalista, Isabel Moreira aprofunda em Apátridatemas presentes na sua já apreciável obra, produzindo um livro que se lê num fôlego sobretudo quando está fechado.
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