É-me dirigida, com frequência exacerbada pela insanidade confinatória, a pergunta: porque deixei eu , há já áridos anos, de escrever para o Mundo?
Aquém de qualquer resposta, é preciso descontextualizar a indagação, uma vez que o confinamento não me causa mácula ou agrura, isto é, não mais do que sempre senti perante a constatação, seminal, da minha insularidade num atol, inefável embora atol, de ideias, análise e percepções. Vivo no campo, a minha família está bem de saúde, tenho amigos, animais e plantas dos quais cuidar e as minhas necessidades resumem-se ao acto de conservar. Em toda a verdade, a era dos grilhões sociais constitui uma oportunidade única para o anacoreta hodierno.
Ora acontece que não tenho nada a dizer ao Mundo, pois o Mundo na sua pubescência grandiloquente de hormonas, é incapaz de ouvir. O Homem é o falso silêncio, a ilusão de uma voz; toda a letra e toda a canção da Humanidade são inaudíveis se postas à sombra da torrente ensurdecedora da Existência, como quem quisesse ilustrar a dualidade da condição humana - excruciante para os muito impantes da sua pequenez, quanto para aqueles que desta se apercebem - à qual subjaz a tortura de viver desperto como uma vela no seio do Sol. Daqui, decorre que Deus não está no silêncio, mas sim no verdadeiro ruído, na constatação de serem humanas, e não divinas, as pegadas ausentes da areia. Como ter a pretensão de acrescentar, esclarecer ou burilar seja que ínfimo naco for de um plano perfeito, que flutua sem se afundar, e não carece de interpretação para manter o seu inexorável funcionamento? Não se pode, é infazível.
Mais ainda, a Humanidade é filha de famílias monoparentais num divórcio de polaridades acentuadas. A instabilidade e os recalcamentos de um progenitor obliteram a presença do outro, e o mutismo contemplativo na ausência deste último acaba por vindicar a entropia que espoleta, ab initio, a única projecção terrena que a parca mente antrópica consegue dar à realidade maior: a de um ciclo inescapável, com eterno retorno e revolucões a esmo, onde na verdade não há ciclicidade ou devir alguns, apenas a imutabilidade daquilo que É e "que já estava acontecido" muito para além da comezinha rotação das colheitas.
Todos sabemos que é atributo dos filhos que sejam injustos para com seus pais, pois na inocência noviça sob cuja lente tudo dentro deles é o Mundo e nada do Mundo a eles extrínseco, são surdos à mais óbvia das deduções - a vinha que lhes deu vida foi, ela própria, durante largos tempos bacelo.
Tentando pois (que é da pessoa pensante pensar) conciliar o inconciliável - a herança do Pai Deus imanente e inaudível, com a da Mãe Biologia estrepitosa no furor da carne que cresce - regressa o equívoco entre evidência de ausência e ausência de evidência, decuplicado por lides de frustração, em avatares de dúvida e raiva.
Isto posto, a dúvida, a raiva e por conseguinte a voz são a arma do adversário, enquanto a certeza, a serenidade e o silêncio caracterizam necessária e suficientemente o agonista. Ao Mundo, como aos filhos, pertence chegar por si mesmo ao grande legado folclórico da espécie, que passarão, polvilhado de paralaxe individual e aleatória, em diante.
Perante a contemplação indiferente do Absoluto.
E é por isto que não tenho nada a escrever ao Mundo.