6.1.06

Kingdom of Heaven

É que foi isso mesmo. Durante semanas achei que era uma "correctice" politicamente kosher a la black hawk down. Parecia. Caraças, árabes, dir-se-ia, laicos em contenção e avanço hermético, enquanto alcateias de figuras cristãs, travestidas de sicários obcecados, urravam por sangue. Jurei tratar-se de uma encomenda situacionista.

Depois reparei que a fotografia tem a mesma candura e o pendor subliminarmente grotesco presente em The Duellists, o primeiro filme que o gajo fez. Não tem Keitel nem Carradine, tem um Bloom revendedor da Avon, mas erguem-se ao lado árabes - árabes a sério, e malta proeminente em papéis secundários. Um Irons e um Malkovitch que nem se dá por eles, só faltou o Gabriel Byrne para completar um achincalhanço genial com "O Homem da Máscara de Ferro". A fotografia. Os corvos, um lençol de gente morta a servir de mortalha para um campo cujo fedor e gordura derramada quase te entram pelo copo de tinto, roxos de alvorada e uma bruma impossível a subir dos escombros da muralha. Prodigioso.

Entretanto, o gajo repete as cenas que fez em Gladiator, o chiaroscuro florestal, a granularidade do sangue, visceralmente unitária, individualizada. Duplamente carnal, na imagem e no aftershock psicológico. No preciso instante (dêem-me o desconto do Cabeça de Burro 1997) em que pensas "ok, agora o gajo acerta as contas religiosamente falando", há um árabe que diz "god wills it", justificando a completitude de uma chacina campal, frase invocada pelo menos 5 vezes até a esse ponto e responsável pela minha postura inicial perante o script. Magistral, caí que nem um borrego.

De resto, não há efeitos - há engenharia como a engenharia sempre deveria ter sido, a nudez da tecnologia, um abrir de peitos mecanicista. As torres que caem, as marcas da cal, a taça rejeitada pelo homem errado na altura errada, a voz do Jeremy Irons.

A merda do filme, visto à 5ª vez, agora com o meu filho a perguntar-me TUDO o que se possa imaginar sobre o setting histórico da altura, consegue pôr-me a escrever num sítio destes, a esta hora, sobre um assunto que não se transmite.

É assim.

1997.

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