28.5.04

"Não olhes para trás, o fim é sempre um príncipio para todos aqueles que nasceram com asas...



Os prados eram azuis porque a luz do azul da manhã não deixava existir outra cor. As azedas que cobriam os campos, as papoilas. Noutras alturas o trigo crescido e nós em sonhos a correr e a fazer nascer seres por entre o trigo crescido. Os nossos sonhos são sempre da intensidade desse azul, em qualquer momento do dia, em qualquer estação, com qualquer luz ou escuridão, em qualquer idade.
É lindo quando temos 15 anos e cantamos ‘somewhere over the rainbow’, mas ainda que visualmente muito menos belo, tem a mesma beleza quando a cantamos aos 80. Temos algo em nós, criado entre a memória do riso e a força de cada sonho a nascer, que nos fará sempre acreditar que num qualquer lugar, muito além do arco-íris...
Sabemos depois todas as histórias, nossas e dos outros, e os nossos lugares de infância misturam-se com Combray, e com todas as imagens e lugares das personagens que passaram a viver connosco. Sabemos mais que bem (o feiticeiro de oz, Peter Camezind, O que diz molero) que todas as voltas ao mundo que dermos nos trazem ao mesmo e único lugar: o primeiro, o nosso.
Mas nada disso toca a força de cada sonho novo a nascer, como nenhuma conquista alguma vez tocará a nossa aspiração.
É este o barro, em que as palavras e as ideias ficam sempre à flor da pele, e são as emoções que ditam, sempre, sempre, cada derrocada e cada erguer do nada. Por mais que nos digamos velhos, corroídos pela desilusão, somos sobretudo e sempre um fantoche nas mãos da ilusão."

(não é meu, é aqui da alice)
Ainda tenho as tuas feridas. Hoje passei pelas bandas sonoras, parei nos sinais vermelhos como se lançasse raízes aos centímetros de estrada que ficavam para trás. Soube-me bem a janela aberta durante a noite, o luar que invadia o meu sono profundo, o primeiro desde há muitos meses. Ainda tenho as farpas que rasgam a carne quando os céus estão azuis, aquele azul esverdeado como algas, sarapintado em grãos de areia onde o sol beija a pele. Ainda tenho os teus olhos cravados na nuca, arde-me o peito quando acordo sem ti, se eu pudesse queimar um planeta com esta angústia que me preenche.
Hoje fiz o caminho como uma bela palmeira. Fomos a rir e a conversar sem pressas, não quis pensar que teria que vir para aqui, para o meio dos loucos, cair sem amparo entre a corja amorfa e cinzenta. Também isto me soube bem, e olha, a raiva e a náusea e a peste e os vaipes de revolta já são folhas da mesma árvore, já são cores no meu tapete e não tomam conta dos momentos, é que mesmo assim não tiveste razão. Corta-se uma vida ao longo dos anos, sobretudo à sexta-feira, com as facas do desespero.
Aqui não se respira o mesmo ar que tu e eu partilhámos. As pessoas são curtas, finas, rasas, e o pavor leva-as a apedrejar os cães que ladram em tons diferentes. É uma casa difícil, esta que me guarda as costelas enquanto ando por aí. Vais gastar um pouco mais do teu sangue, outras quantas certezas, e acabas por acordar numa manhã como esta.
As nuvens continuam a ser nuvens, e dos dias confusos só tenho as tuas feridas. Preciso de pouco mais para voltar a pintar esta praia com as cores da paixão.