17.1.05

Foi diferente do que esperava, como se um pano vermelho lhe tivesse caído sobre o rosto. Não sentiu dor nem angústia, pelo contrário a noção da sua total impotência aliviou qualquer culpa que por ética tentasse formar.

As mãos perderam o vigor, todo o peso do corpo estava subitamente aplicado no seu peito. Algures por trás da parede vermelha, pensou ver-se a si próprio, destacado do corpo e sem forma, sereno e imóvel olhando em frente.

As memórias irromperam em debandada, face ao destino iminente do seu repositório. Sons, imagens, emoções e desejos por concretizar atropelavam-se pela hipótese de serem sentidos uma última vez. Era verdade. A sua vida desfilava perante si no derradeiro momento. O tempo tendia para o infinito enquanto a trovejante procissão o ensurdecia por completo.

Comfortably Numb. Nunca mais vou viver.

Nada rompia o domínio hermético do vermelho. Até que este se ergueu, voou, partiu para atender a outro chamamento, devolveu-lhe as cores
da vida ainda um segundo, por ironia ou piedade nunca ficou escrito.

Não foi por coragem nem valor que lhe veio à mente “seize the day”. A frustração e o pavor comprimiam?lhe as entranhas, libertando-o do peso adicional do seu conteúdo por forma a garantir-lhe maior mobilidade, a reacção do caçador paleolítico.

Nos três segundos desde que o pano vermelho o tocara, teve tempo de tudo isto e ainda de guinar o volante.

O som chegou primeiro, e apercebeu-se capaz de identificar, sobrehumano, cada fonte de ruído. O guincho da borracha no asfalto, a toda a volta. A bomba dos travões a rebentar e a esguichar óleo negro e viscoso. A coluna da direcção a quebrar, com um clamor metálico horrível e arrepiante. Os vidros a ceder, estilhaçados, sob a pressão da travagem.

Simultaneamente, em sincronia perfeita, foi atingido por mil fragmentos afiados e pelo cheiro intenso dos materiais calcinados.

No turbilhão daquele percurso, o seu olhar ia pousando sobre os rostos dos outros condutores, um alfabeto de expressões diferentes a apostar morbidamente sobre o seu purgatório final. Poderia jurar que sobre cada face pendia um pano vermelho. À espera que um anjo o levasse.

Vocalizava expressões sem nexo.

Silêncio.



Dez dias depois converteu todas as suas posses em dinheiro e partiu à descoberta do tempo que lhe restava, a seu lado a mulher que amava e as crianças nas quais depositava a esperança de um mundo melhor, já liberto de quem lhe fizera crer que não vale a pena perseguir a utopia. A esses, deixava apenas uma oferta, uma recordação - a possibilidade de descobrirem, sozinhos e já muito, mas muito mais tarde na vida, o toque do pano vermelho.

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