31.12.04

3.

A minha prima Ana Rita tem o olhar. Aquele olhar. Sempre teve. Vi ontem uma foto dela, quando tinha sete anos, e já então miudinha tinha o olhar firme, fixo, sabedor, trespassante como quem faz da Terra um jornal que se lê à luz de uma supernova.

Deve ser esse olhar que tanto apreciam em mim, quem me conhece, quem me descobre. Há mais gente na minha família que também o tem, e que tem outras coisas. Como aquelas que eu referi ali no outro post.

Hoje julgo ter percebido. Porque assumimos o dever, porque desfocamos de nós mesmos, sem nunca perdermos o amor-próprio e até com algum hedonismo (que os de tons sépia avaliam por essa linha energúmena, "tu tens a mania que sabes tudo", quando efectivamente se torna claro que eles nada sabem embora se arroguem "sérios") e ainda assim o nosso motor é a responsabilidade, é passar o testemunho, somos da cepa dos que guardam a vida e as velas. E somos de tons vibrantes, de formas múltiplices, arde-nos cá dentro esta coisa feroz e belicosa que por vezes nos domina e ameaça destruir, e ardemos, ah se ardemos, somos tochas presas a cometas de amor, rasgando os mapas do purgatório de cada um, e - quando conseguimos manter a calma e singrar os dias na placidez de sermos aquilo que somos, aí então não nos consumimos, nem um de nós desiste ou se entrega à morte fervente dos caminhos do excesso, e nessa altura paramos e tiramos uma noite para nós como hoje, na certeza de haver ainda muitos dias durante os quais poderemos ensinar, acalentar, ajudar, escrever, parir.

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