29.10.03

Ébrios


Caminhei ao longo do cais, levado pelo silêncio das margens ainda sombrias na manhâ de Agosto. Espraiados, os botes coloridos bailavam sob o pêndulo do cachão, a ria a fazer toilette em antecipação ao despontar dourado. O molhe, fincado, acolhia as amarras dos batelões enferrujados, em merecido repouso da faina diária e redundante.

O céu levava traços púrpura e laranja, com laivos de meios-tons por nomear. O aroma era de maresia ou talvez da liberdade que espreitava já ali, ao virar da barra. Fazia-se sentir uma frescura que me acalentava os sentidos.

Dei com os três na escada do pontão, ainda envoltos no frémito da noitada, em cada mão esquerda um copo vazio a exprimir a fome de segurar os momentos já idos. Falavam e riam à toa, palavras que não me dei a interpretar, mas logo me deixei contagiar pela leveza do seu estar, e abri um sorriso, um olá cúmplice e tentativo.

Acenaram com os copos, os olhos da Ana a desmentir a nesga de sol que alvorecia sobre a velha fábrica de conservas à entrada da barra. A careca do Leonel reflectiu por um instante fugaz o primeiro raio do dia, chegadas as sete da madrugada e um pouco menos de roxo a leste.
Continuaram na sua ladainha, ambos e o outro que fazia a corte aos gomos de laranja no fundo do copo rachado. O troar suave das suas vozes dava nexo a querer ser jovem, levava de vencida a apatia de crescer e envelhecer submisso à História.

Quando o barqueiro veio cumprimentámos o sol ombros com ombros, pintando o alvor com palavras esdrúxulas e recém-nascidas. Assim nos transportou, vinte segundos ou dez horas de comunhão pueril, e quando finalmente atracou e os nossos pés calcaram a areia húmida de orvalho, soltámos um adeus tão curto quanto a nossa vivência, tão factual quanto o azul que já era a única cor do céu, íntimo não como ocorre entre indivíduos, mas antes entre exemplares de uma mesma espécie, de olhos postos na magia do momento presente.

Creio que não tornarei a ver a Ana, nem o sol reflectido na calvície do Leonel, nem o outro que assediava os gomos de laranja. Mas quando entrei na casa que era minha sem o ser, e me deixei vaguear nessa orla enevoada às portas do sono, voltou-me aquele sorriso que me invadira lá atrás, no molhe. A certeza reconfortante de que, tal como hoje me sucedera, haverá mundo fora miríades de alvoradas, de Anas, e de brisas refrescantes à espreita do Tempo parado, à beira de descobrir o que nos faz quem realmente somos.

Sem comentários: