17.1.05

Assassinos com Natas


Um dia Ricardo ensandeceu. A trip de hiperactividade comeu-lhe um neurónio a mais, fez-lhe arder as sinapses no sítio errado na altura errada.
Ao cair na sua prostração, logo de jorro foi assoberbado por todas as conclusões que negara, por todos os sentimentos que remetera em fast forward para a sopa dos pobres da sua mente. Afinal as emoções existem e o ruído de fundo da criação passa mesmo por elas. Nem sempre o Aspegic faz efeito.
A morte saíu à rua num dia assim. Não ia de Harley nem pingava azeite das melenas esvoaçantes, e muito menos levava uma foice na mão. Nada de tão rude.

Sentada no seu coma diário, Milena estava a palitar os dentes da frente com a tampa da caneta. Os tiques de secretária assentavam-lhe como uma luva de basebol, embora na realidade fosse directora administrativa e financeira de uma casa de pasto no Campo das Cebolas.
Não era um bom dia. Ainda por cima, o período tinha vindo em postas acima da média e doíam-lhe os rins como se tivesse feito doze horas de sexo anal com a alavanca das mudanças.
Tomada de assalto por um desejo irracional de ver as obras do metro, levantou-se de rompante e dirigiu-se para a rua, os saltos das botas a castigar o soalho como o toque erógeno dum par de matracas. Por entre a dentadura sintética, entoava o “1492” que lhe garantira melhores condições de vida, como um jipe, cabeleireira todas as semanas e três cartões de crédito. Lá fora o vento soprava inclemente.

“Já não há hora de ponta”, dizia a velhinha carcomida enquanto tentava perceber aquele símbolo estranho em forma de “E” no preço das couves. “Vá de metro, Sacanás!”.
A composição zunia pelos vetustos túneis, recheando as mentes dos 600 ocupantes de silvos feéricos e chiados não ardidos. Lisboa já não era Suíça só no ar, outrossim tornara-se uma grande e purulenta cratera com algum solo pelo meio. Cheirava a entremeada e caatinga quando a morte entrou na carruagem, gabardina cruzada sobre o peito e olhar esgazeado como um marciano acabado de chegar à cidade.

“OH PUTA METE ESSA MERDA NO CÚ, DEITA MAS É O BETÃO NA COFRAGEM!”
“VAI COMER NA PEIDA, BARDAMERDA DUM CABRÃO, OLHÁ SENHORA A OUVIR!”
“I DISPOIS USPRÊTÉQUIFAIZ MAL PRU PAÍS”
“CALATÓ ESCARUMBA DE MERDA CALATÓ ESCARUMBA DE MERDA”
As obras prosseguiam a ritmo normal. Milena divertia-se com as bojardas dos trabalhadores, apesar de manter sempre um ar distante e reprovador. Nuvens de poeira amarela cobriam a área do estaleiro, misturadas com a brisa carbónica vinda do Tejo. Talvez fosse altura de mudar... sair da cidade, pegar nas miúdas e convencer o Binau a ir engenheirar para outro lado... um dia este sítio haveria de acabar por estragar a vida a toda a gente. Acendeu outro cigarro.

De repente Ricardo apercebeu-se que o último instante da sua vida passara há horas atrás. A derradeira coisa em que pensou foi que mesmo que pudesse, não voltaria atrás. E puxou o aramezinho que prendia a cavilha.
Os primeiros pedaços de carne e ossos atingiram as paredes do túnel ainda pouco depois do Rossio. Nacos de músculos e tendões foram propelidos em todas as direcções numa orgia inflamada, enquanto a pressão do ar fazia o resto do trabalho. Litros e litros de fluidos corporais voavam em bátegas, fervendo, os guinchos dos carris indistinguíveis do estertor da mole humana privada, em menos de um segundo, de tantos anos de dúvida e angústia impotente.
O universo parido por Ricardo continuava o seu big bang macabro, abrindo caminho por entre vísceras, portas, vidro. A serpente de acrílico continuava a sua marcha inexorável, semper fi. Quando o gancho de cabelo da velhinha carcomida irrompeu da garganta do maquinista, como uma flor carnívora a desabrochar, este acabara de pensar que tinha comichão na nuca.

Desde tempos imemoriais, o grande problema de Portugal sempre foi a candura demonstrada pelo seu povo em relação a obrigações e deveres. Cheios de boas intenções, os régulos desta aldeia piscatória emitiram centenas de leis e decretos que, a serem correctamente aplicados e fiscalizados, teriam tornado aquela terra num poço de civilização. Infelizmente para Milena e para os que trabalhavam nas obras do metro naquele dia, tal jamais aconteceu, e os tubos do gás natural tinham ainda uma folga de um milímetro, desde que haviam sido colocados no início do mês. Bolhas e mais bolhas escapavam diariamente à torrente oriunda de Marrocos, disseminando-se no ar viciado à espera duma centelha de inspiração.
O comboio surgiu, crispado, levando à sua frente as barreiras improvisadas de cartão prensado. A todo o seu comprimento estava envolto em chamas e faíscas eléctricas, arrastava consigo o odor nauseabundo da matança infernal.
O corpo do maquinista ainda perdurava, hirto e empalado pelo pescoço no vidro da frente do comboio; Caronte na sua barca não seria uma visão tão aterradora.


Horas mais tarde, já pela madrugada dentro, o subdelegado de saúde deu o dia por terminado. Não se podia compreender onde raio a coisa tinha começado... Escarrou para o chão e foi para casa ver a bola.

O vento soprava inclemente quando o Sol se ergueu sobre o rio. A luz tímida saudou um novo dia de stress e abandono de valores. As botas chamuscadas do que um dia fora Milena tombaram, inertes, à passagem do autocarro, os saltos tingidos de carmim a beijar a calçada com um toque erótico, como duas matracas. Nada mudara, ou será que alguém ouviu esta história?

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