João César das Neves
O nosso tempo é desconfiado. Um dos traços de carácter mais influentes e ocultos da nossa era é a suspeita latente dos cidadãos. Ao mesmo tempo, porém, a nossa sociedade céptica tem uma fé ingénua na lei. O resultado desta insólita combinação é que a vida hoje é regida, estatuída e restringida de uma forma que não tem paralelo em qualquer outro tempo e lugar.
Existem regulamentos, decretos, portarias para todos os temas e assuntos. De vez em quando os jornais denunciam indignadamente a falta de regulamentação de uma qualquer actividade, manifestando assim esta patética exigência: os detalhes mais ínfimos da nossa vida têm de estar sujeitos ao minucioso controlo da legislação.
Para que essas cláusulas sejam cumpridas existe um enorme exército de fiscais, inspectores e vigilantes que, em variados sectores, se dedicam a acompanhar, denunciar e punir a violação dos tais regulamentos.
Tudo isto é feito, obviamente, em nome de princípios elevados: a saúde pública, qualidade alimentar, educação responsável, segurança nas estradas, combate ao crime, eliminação da corrupção, defesa do ambiente e mil outros objectivos louváveis.
Mas o Estado democrático suporta aí um poder mais totalitário e minucioso que as piores ditaduras.
O problema é que a lei é um instrumento grosseiro e brutal. Ela não consegue, de facto, substituir a adesão livre, a cooperação social, a honorabilidade pessoal. Assim, as leis têm muita dificuldade em promover os objectivos proclamados nos seus articulados.
Quando chega um inspector a uma escola, não lhe interessa se os alunos são bem ensinados ou se aquela é uma comunidade educativa saudável e funcional. Ele tem é de medir as janelas, contar as sanitas, calcular os metros quadrados por criança. Se algum dos miríades de indicadores prescritos estiver fora do nível fixado pela lei da Nação, a escola é multada, obrigada a obras incomportáveis ou até fechada. Que os principais prejudicados por isso sejam os alunos é absolutamente irrelevante para os fiscais.
Uma visita de inspecção a um restaurante ou loja alimentar não se ocupa da qualidade da comida ou da satisfação dos clientes. Tem é de registar os prazos nominais dos alimentos, observar as condições de exaustão de fumos, exterminar galheteiros, colheres de pau e outros instrumentos nocivos. Normalmente, a presença da Inspecção implica a destruição de toneladas de comida em excelentes condições, cometendo os fiscais um desperdício muito mais criminoso do que os que tentam evitar. Entretanto, os comerciantes são multados ou até presos, não por venderem produtos avariados, mas por terem nas instalações "condições de embalagem e refrigeração desadequadas".
Naturalmente que os casos de sucesso atraem mais as fiscalizações. Uma empresa lucrativa, uma escola procurada, um festival gastronómico são presas apetecidas. E há sempre algum parágrafo por cumprir, o que alegra o estéril fiscal, satisfeito por revelar a fútil aparência do tal sucesso. Toda a criatividade, inovação, originalidade é contra os regulamentos. Só a mediocridade apática passa na inspecção.
Já a Antiguidade dizia que a lei tem de ser aplicada com equidade. Esta virtude resume o bom senso do juiz na análise das circunstâncias concretas do caso. Quem viole a letra da lei com razões poderosas, justificáveis e até legítimas, deve ser absolvido. Mas como se pode exigir esta elevação a uma multidão de inspectores, em múltiplas visitas diárias? Aliás, mesmo que um fiscal seja sensato e compreenda as razões do incumprimento, o mais provável é que venha a ser denunciado como negligente ou corrupto por um colega zeloso. Os regulamentos são sagrados. A severidade, mesmo injusta e destruidora, é o sinal que consola a sociedade nos seus propósitos elevados.
Devido à obsessão moderna pela saúde, educação, ambiente e outras abstracções, e sobretudo à enorme desconfiança em que vivemos, os inspectores têm uma autoridade que nenhuma outra classe possui. Eles são, ao mesmo tempo, detectives, acusadores, juízes e executores. Quanto mais elevado é o valor em causa, mais graves os efeitos. Hoje é concedido a funcionários o poder supremo de tirar filhos a seus pais.
Os poderes regulamentar e inspectivo são muito mais eficazes que os poderes legislativo e judicial. Exagerados, ficam asfixiantes. A sociedade que substitui a confiança nos cidadãos pela letra da lei acaba na ditadura, por mais elevados que sejam os seus propósitos.
Existem regulamentos, decretos, portarias para todos os temas e assuntos. De vez em quando os jornais denunciam indignadamente a falta de regulamentação de uma qualquer actividade, manifestando assim esta patética exigência: os detalhes mais ínfimos da nossa vida têm de estar sujeitos ao minucioso controlo da legislação.
Para que essas cláusulas sejam cumpridas existe um enorme exército de fiscais, inspectores e vigilantes que, em variados sectores, se dedicam a acompanhar, denunciar e punir a violação dos tais regulamentos.
Tudo isto é feito, obviamente, em nome de princípios elevados: a saúde pública, qualidade alimentar, educação responsável, segurança nas estradas, combate ao crime, eliminação da corrupção, defesa do ambiente e mil outros objectivos louváveis.
Mas o Estado democrático suporta aí um poder mais totalitário e minucioso que as piores ditaduras.
O problema é que a lei é um instrumento grosseiro e brutal. Ela não consegue, de facto, substituir a adesão livre, a cooperação social, a honorabilidade pessoal. Assim, as leis têm muita dificuldade em promover os objectivos proclamados nos seus articulados.
Quando chega um inspector a uma escola, não lhe interessa se os alunos são bem ensinados ou se aquela é uma comunidade educativa saudável e funcional. Ele tem é de medir as janelas, contar as sanitas, calcular os metros quadrados por criança. Se algum dos miríades de indicadores prescritos estiver fora do nível fixado pela lei da Nação, a escola é multada, obrigada a obras incomportáveis ou até fechada. Que os principais prejudicados por isso sejam os alunos é absolutamente irrelevante para os fiscais.
Uma visita de inspecção a um restaurante ou loja alimentar não se ocupa da qualidade da comida ou da satisfação dos clientes. Tem é de registar os prazos nominais dos alimentos, observar as condições de exaustão de fumos, exterminar galheteiros, colheres de pau e outros instrumentos nocivos. Normalmente, a presença da Inspecção implica a destruição de toneladas de comida em excelentes condições, cometendo os fiscais um desperdício muito mais criminoso do que os que tentam evitar. Entretanto, os comerciantes são multados ou até presos, não por venderem produtos avariados, mas por terem nas instalações "condições de embalagem e refrigeração desadequadas".
Naturalmente que os casos de sucesso atraem mais as fiscalizações. Uma empresa lucrativa, uma escola procurada, um festival gastronómico são presas apetecidas. E há sempre algum parágrafo por cumprir, o que alegra o estéril fiscal, satisfeito por revelar a fútil aparência do tal sucesso. Toda a criatividade, inovação, originalidade é contra os regulamentos. Só a mediocridade apática passa na inspecção.
Já a Antiguidade dizia que a lei tem de ser aplicada com equidade. Esta virtude resume o bom senso do juiz na análise das circunstâncias concretas do caso. Quem viole a letra da lei com razões poderosas, justificáveis e até legítimas, deve ser absolvido. Mas como se pode exigir esta elevação a uma multidão de inspectores, em múltiplas visitas diárias? Aliás, mesmo que um fiscal seja sensato e compreenda as razões do incumprimento, o mais provável é que venha a ser denunciado como negligente ou corrupto por um colega zeloso. Os regulamentos são sagrados. A severidade, mesmo injusta e destruidora, é o sinal que consola a sociedade nos seus propósitos elevados.
Devido à obsessão moderna pela saúde, educação, ambiente e outras abstracções, e sobretudo à enorme desconfiança em que vivemos, os inspectores têm uma autoridade que nenhuma outra classe possui. Eles são, ao mesmo tempo, detectives, acusadores, juízes e executores. Quanto mais elevado é o valor em causa, mais graves os efeitos. Hoje é concedido a funcionários o poder supremo de tirar filhos a seus pais.
Os poderes regulamentar e inspectivo são muito mais eficazes que os poderes legislativo e judicial. Exagerados, ficam asfixiantes. A sociedade que substitui a confiança nos cidadãos pela letra da lei acaba na ditadura, por mais elevados que sejam os seus propósitos.
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